sexta-feira, 15 de maio de 2020

Resenha Literária "O que é isso, companheiro?" de Fernando Gabeira

Resumo do ensaio
Este ensaio visa uma reflexão sobre o papel social das instituições militares do Brasil e como elas em sua prática atuam na sociedade. Este estudo toma como ponto de partida a leitura da obra O que é isso, companheiro?  do escritor Fernando Gabeira. Para concatenar as ideias e reflexões o texto será organizado em duas partes: a primeira, destinada a uma introdução à obra e a segunda, destinada a uma análise do contexto social brasileiro de 2019. Cabe enfatizar que nenhuma solução ou conclusão será formulada, o texto visa levantar pautas e questionamentos pertencentes ao debate.  

Introdução à Obra

O que é isso, companheiro? é uma obra escrita por Fernando Gabeira, publicada em 1979 que trata dos anos de ditadura militar no Brasil. O livro em sua totalidade é repleto de aspectos autobiográficos, onde encontramos reflexões e experiências vivenciadas pelo autor que foi militante do grupo guerrilheiro MR-8.  O texto é narrado por um narrador-personagem de primeira pessoa, que relata o dia-a-dia das pessoas que militavam contra as ações das Forças Armadas no país.  Nos primeiros capítulos, a obra não proporciona ao leitor uma sucessão de fatos e acontecimentos de maneira clara. Em geral, são feitas algumas descrições sobre os diferentes grupos militantes contra a ditadura (como UNE, ALN e MR-8) e suas ações em território nacional. Um aspecto da militância que é posta em relevo em meio  às descrições feitas pelo narrador é a fragmentação da esquerda frente ao golpe militar. Havia no Brasil diferentes grupos que atuavam contra as ofensivas do exército, esses grupos, embora mantendo relações entre si, trabalhavam de diferentes maneiras, sendo alguns de cunho armamentista, como o MR-8, e outros que não faziam parte da luta armada, como a União Nacional dos Estudantes (UNE).  Muitos grupos de oposição ao golpe militar começaram a integrar a militância tardiamente. Um exemplo desses grupos são os trabalhadores operários, que passaram a se organizar em sindicatos muito tempo após a eclosão do golpe em 64. Outro ponto também debatido no texto, referente aos atrasos ideológicos ocorridos na época, foi a própria reação da esquerda frente ao golpe. “A ala moderada do movimento de esquerda acusa a ala mais radical de ser responsável pela derrota, e o setor mais radical acusa a ala moderada. E esse pingue-pong toma às vezes muito tempo, até que se perceba sua inutilidade”. (Gabeira, 1979, p.28) Outro ponto igualmente debatido, é o próprio conceito de luta armada e sua eficiência no contexto social e histórico que passava o Brasil. Para alguns, o enfrentamento armado chegava tardiamente ao país, em um período em que essa prática já não tinha mais prestígio nos contextos em que fora utilizada: “Brasil, um país onde as ideias políticas chegavam com atraso em relação ao resto do continente [...] a guerrilha começou a ser pensada no Brasil quando já estava em decadência em outras partes da América Latina” (Gabeira, 1979, p.41).  No entanto, entre os grupos militantes, o envolvimento em ações armadas era visto como uma solução que infelizmente se tornaria necessária. A repressão por parte do governo era extremamente implacável. As práticas pacíficas de militância, como a entrega de panfletos e as passeatas, não surtiam efeitos significativos e, em alguns casos, não muito isolados, resultavam em prisões, torturas e mortes. Sendo a ditadura um regime civil-militar, atos institucionais autoritários que davam mais autonomia de atuação ao Exército foram sancionados. Alguns dos mais famosos foram o Ato Institucional nº 2 (implantado pelo presidente Castelo Branco) e o Ato Institucional nº 5 (de autoria do presidente Costa e Silva). Esses atos, além de tirar direitos essenciais aos cidadãos como liberdade de expressão, entre outros, tornavam as Forças Armadas ainda mais nocivas. Cassação de mandatos de senadores, deputados e demais políticos sem o consentimento do congresso passaram a integrar as práticas de repressão do Exército brasileiro, assim como efetuar prisões aleatórias e prender, transportar e executar pessoas.    Por esses motivos, pelas corrupções do governo e pela dissolução de um estado democrático que é de direito a todos, grupos armados, como já citado acima, iniciaram um enfrentamento aos ataques do regime militar à população. E esse é o ponto-chave abordado na narrativa. Mais para a metade do livro e partindo em direção às páginas finais, o narrador-personagem irá relatar com detalhes como foi realizado o sequestro do embaixador norte americano Charles Burke Elbrick protagonizado pelo grupo guerrilheiro MR-8, o qual Fernando Gabeira integrava assim como também havia participado da ação. Nesses trechos da obra, sãos narrados os momentos de planejamento e execução do plano. O sequestro foi realizado com sucesso e após manter em cativeiro o embaixador americano por alguns dias, o alto comando militar aceitou as condições de entrega dos sequestradores, que devolveriam o embaixador com vida com a exigência de que 15 guerrilheiros e militantes presos pela Polícia do Exército (PE) fossem liberados. O pedido foi atendido e o sequestro chegou ao fim com a libertação de Elbrick com vida. No entanto, as buscas pelos responsáveis do sequestro não cessaram e o protagonista da narrativa acabou sendo preso e passou por longos períodos de reclusão. Esse é o ponto mais sensível e cruel da leitura, onde são narrados em primeira pessoa e com uma riqueza incrível de detalhes, as sessões de tortura vivenciadas pelo personagem. “Ligaram os fios na minha mão e começaram a dar choques e perguntar por pessoas. Capitão Tomás gritava enquanto davam os choques: turco filho-da-puta, turco filho-da-puta.” (Gabeira, 1979, p.159) Essas, assim como outras torturas são fortemente detalhadas pelo personagem. Um ponto bastante pesado da narrativa trata a respeito da tortura não só física, mas também da tortura psicológica. Um trecho que exemplifica essa modalidade de violência mostra a dor de um preso político nesse regime cruel que foi a ditadura militar. 
Criam-se em nossas cabeças certas lógicas, certas regras: depois da tortura, passa-se por uma fase de espera no DOPS e vai-se para o presídio. Qualquer ruptura naquela lógica parecia insuportável, pois uma coisa é entrar na tortura quando se espera; outra é ser chamado para ela num momento de distensão, quando já se está tentando criar uma nova rotina dentro da vida carcerária. (Gabeira, 1979, p.167)
Os trechos da rotina na prisão se seguem até o ponto em que um grupo guerrilheiro de uma célula distinta protagoniza o sequestro de outro embaixador. Dentre a lista de prisioneiros que os sequestrados exigiam para a libertação, o nome do narrador-personagem se encontrava presente. Assim a obra chega a seu desfecho com o protagonista da narrativa sendo anistiado, partindo para o exílio com um grupo de militantes que estavam em igual situação.
Brasil 2019
Como sabemos, é dever do estado proporcionar aos cidadãos diversos serviços que fazem parte de nossas necessidades básicas para sobrevivência, como a saúde, o acesso à educação e o direito à segurança. No entanto, no cenário atual em que vive o país, com a crescente violência  civil/militar, onde fica o papel do estado e qual é o seu verdadeiro dever? Na obra “O que é isso, companheiro? ” de Fernando Gabeira, nos são apresentadas duas instituições militares com papéis sociais de proteção e mantimento da ordem, o Exército brasileiro e a Polícia Militar (PM). Porém, ambas instituições em sua realidade cotidiana exerciam ações antagônicas em relação a sua função social.   Agora, pensando em um contexto não literário, percebemos que a denúncia relatada na ficção tem fortes vínculos com a realidade. Segundo Andréa Ana do Nascimento (2011) o Governo Federal encarrega ao Exército o dever de proteção à nação, às polícias Militar e Civil o dever e o compromisso com a segurança pública dos estados (sendo a PM responsável pelo policiamento ostensivo e preventivo e a Polícia Civil, a atribuição de polícia judiciária, onde sua função primordial é elaborar inquéritos nas investigações de crimes). Dentro dessas instituições existem hierarquias internas que determinam os círculos de relacionamento entre os agentes, sendo na Polícia Militar os “praças” (soldados, cabos, sargentos e aspirantes) e os “oficiais” (cargos que vão de tenente a coronel); na Polícia Civil tal hierarquia opera em uma lógica um pouco menos rígida, porém igualmente separatista, constituída pela “tiragem” (policiais civis, investigadores) e delegados. A hierarquia dentro dessas instituições não serve apenas para separar os agentes novatos dos veteranos. A carga horária de trabalho, a distribuição das atividades e os salários também seguem essa lógica hierárquica, o que ocasiona conflitos e rivalidades internas. Como já citado acima, essas duas instituições são responsáveis por manter a segurança e o controle da população, porém, cada uma delas, ainda que consideradas policias, operam de maneira autônoma, o que resulta em uma não correspondências entre ambas:
"Essa separação entre as polícias acarreta uma cultura institucional muito diferente e desconfiança mútua. As informações obtidas são fragmentadas, o que facilita a apropriação particularizada, uma vez que não existe, necessariamente, uma linha de integração entre as instituições, dificultando o planejamento da segurança pública em uma perspectiva global [...]"(Nascimento, 2011, p.60)
Nesse contexto de não-coesão, em ambas as instituições surge o fenômeno da corrupção civil-militar. Essa, segundo Andréa Ana do Nascimento (2011) pode se manifestar de duas formas: Interna, quando por exemplo, policiais que por meio de pagamentos são privilegiados na distribuição das atividades ou para receberem férias no prazo estipulado precisam efetuar pagamentos aos superiores; e externa: quando os agentes recebem dinheiro ou “presentes” (como utilizado no jargão militar) para realizar ou não seus serviços à sociedade. Esses conflitos entre as instituições, assim como o preconceito racial e de classe, refletem na interação que essas instâncias de poder têm com a sociedade. Segundo estudo divulgado pela Pastoral Carcerária, o Brasil é o país com a 4ª maior população carcerária do mundo, sendo mais de 175 mil pessoas presas por todo o país. Entre esses números citados, a grande maioria de detentos é constituída por pessoas negras de origem periférica. O aumento do número de pessoas presas não caminha de mãos dadas com o investimento em estruturas físicas para comportar essas pessoas. Ou seja, a falta de recursos resulta na superlotação dos presídios estaduais, fenômeno comum por todo o país. Com isso, ao invés dos agentes penitenciários, quem toma conta dos presídios são as próprias facções criminosas. Em janeiro de 2017 mais de cem presos foram mortos em rebeliões ocorridas em presídios brasileiros, sendo algumas das mais notórias em Manaus (AM), Roraima (RO) e Alcaçuz (RN).  O que devemos nos questionar em relação a essas informações é, qual é o real dever do estado em relação à segurança pública? Por que, em um país onde há crimes em todas as camadas sociais assim como em todas as classes, somente um grupo específico é morto ou condenado a prisão? Não se trata aqui, por meio destas palavras, sair em defesa de facções criminosas. O problema do tráfico ilegal de drogas deve sim ser resolvido pelas forças de segurança pública, no entanto,  o modelo de guerra às drogas, mostra falho a cada ano, e o problema parece nunca se resolver.  Todos os anos, quantias superiores ao orçamento destinado à saúde e a educação são investidas para o combate contra as facções especializadas no tráfico de entorpecentes e ainda hoje, esse problema todavia não foi resolvido. Outro questionamento a ser levantado é, se o Exército é a instituição responsável pela defesa das fronteiras do Brasil e as policias (Civil e Militar) pela defesa interna da população, como armamentos e drogas chegam até as favelas tendo em vista que essas não produzem tais elementos?  A corrupção militar, nessa perspectiva, é o fator que mais contribui para que o problema não se resolva. Não há uma guerra entre dois lados ou entre dois grupos rivais. Um grupo complementa e é complementado pelo outro. Só há um Departamento de Investigação Sobre Narcóticos (DENARC) porque há facções que comercializam entorpecentes, e essas, somente o fazem, porque em parte são financiadas por instituições como o exército e  polícia. E mesmo hoje, com sistemas sofisticados e tecnologias de combate à corrupção, esse problema persiste em consequência de dois fatores: o primeiro se trata da oportunidade, o segundo da impunidade.  No Brasil, os crimes cometidos por militares não são julgados por tribunais comuns e sim por tribunais militares. Por esse motivo, a maioria dos crimes de autoria militar acabam sendo arquivados, como foi o caso recente ocorrido este ano no Rio de Janeiro, onde doze militares do Exército efetuaram 80 disparos de fuzil contra um carro civil, ação que ocasionou a morte do catador de material reciclado Luciano Macedo e do músico Evaldo Rosa. Portanto será que não é o momento de o Brasil repensar uma nova estratégia de combate à violência? Em suma, essas foram algumas reflexões, suscitadas pela leitura da obra de Fernando Gabeira. O objetivo deste trabalho é debater sucintamente o papel social das instituições militares brasileiras, fazendo o levantamento de algumas pautas consideradas relevantes e incentivando a revisão das políticas que regulamentam a segurança pública.
Referências Bibliográficas
THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Tradução: Sérgio Karam. Porto Alegre: L&PM
NASCIMENTO, Andréa Ana. A corrupção policial e seus aspectos morais no contexto do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Segurança Pública, São Paulo, Ago/Set 2011



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